A Recuperação Judicial e a Consolidação Processual nos Termos da Lei N. 14.112/2020

Julia Stefanello Pires

   A Lei de Recuperação Judicial e Falência (LREF), em sua redação original, já estipulava a possibilidade de litisconsórcio ativo no pedido de falência, conforme redação do artigo 96, §1º da referida norma. No entanto, a disposição normativa limitava esta previsão ao processo falimentar, permanecendo silente em relação ao pleito de recuperação judicial. A interpretação judicial do caso levava em consideração o artigo 189 da LREF, a lacuna era suprida pelo Código de Processo Civil, permitindo o litisconsórcio ativo no processo recuperacional nos termos do artigo 113 e seguintes da norma processual.

   Em 2020, diante das dificuldades econômicas causadas pelo estado de pandemia, promulgou-se a Lei nº 14.1122, que trouxe alterações a diversos dispositivos da LREF. Dentre as inovações, destaca-se a inclusão da Seção IV-B, artigos 69-G ao 69-L, que passou a regulamentar a recuperação judicial de grupo sob controle societário comum, consolidando o entendimento jurisprudencial, suprindo a lacuna normativa supramencionada e trazendo disposições expressas sobre os requisitos e termos da consolidação processual.

   Fábio Ulhoa Coelho explica a consolidação processual como a “(…) legitimação ativa de duas ou mais sociedades pertencentes ao mesmo grupo, para um único pedido de recuperação judicial”. Observa-se que se trata de uma medida
exclusivamente processual, com a finalidade de racionalizar a tramitação do processo, e não se confunde com a consolidação substancial, essa com alcance econômico e patrimonial.

   A consolidação substancial é tratada no artigo 69-J e 69-K, apenas nos casos em que se constatar a interconexão e a confusão entre ativos ou passivos dos devedores, de modo que não seja possível identificar a sua titularidade sem excessivo dispêndio de tempo ou de recursos. Ainda, é necessário que se acumulem duas das hipóteses descritas nos incisos do artigo 69-J: I – existência de garantias cruzadas; II – relação de controle ou de dependência; III – identidade total ou parcial do quadro societário; e IV – atuação conjunta no mercado entre os postulantes.

   O referido artigo gerou críticas por parte da doutrina, que aduziu que a determinação de consolidação substancial é tema de demasiada complexidade, a qual não foi abordada na extensão da norma. Assim, tem-se defendido que o artigo 69-J deveria ser interpretado em conjunto ao artigo 50 do Código Civil, para que se pudessem superar contradições e lacunas na aplicação da norma.

   Em relação à consolidação processual, o artigo 69-G determina que os devedores que integrem grupo sob controle societário podem requerer a recuperação judicial, desde que atendam os requisitos estipulados pela LREF. É importante que se esclareça que estes requisitos devem ser atendidos individualmente, como se observa na inteligência do §1º do referido artigo.

   No que tange à competência do juízo falimentar, a recuperação de grupo econômico deverá observar o princípio do juízo universal, determinado no artigo 76 da LREF. Como é consabido, um grupo econômico pode exercer suas atividades empresariais em diferentes localidades, assim, poderia haver certa confusão em relação à qual destas seria a competente para julgar o pedido de recuperação judicial do grupo.

   Visando solucionar essa questão, o artigo 69-G, § 2º, determina que a competência para deferir a recuperação judicial sob consolidação processual é do juízo do local do principal estabelecimento entre os devedores. Como principal estabelecimento, Fábio Ulhoa Coelho conceitua aquele em que se “(…) encontra concentrado o maior volume de negócios da empresa; é o mais importante do ponto de vista econômico”.

   O processamento da recuperação judicial com litisconsórcio ativo atende aos princípios da celeridade e economia processual, de forma que ainda que os devedores em recuperação sejam plurais, o juízo falimentar determinará a nomeação de apenas um administrador judicial (artigo 69-H). No entanto, no caso concreto, existem julgados admitindo a nomeação de mais de um administrador judicial, considerando a complexidade e extensão da recuperação judicial. Como exemplo, cita-se a nomeação de quatro administradores judiciais no pedido de recuperação feito pela Samarco Mineração S.A. (autos n.º 5046520-86.221.8.13.0024).

   Há de se observar que, embora exista a coordenação dos atos processuais, o artigo 69-I garante a independência dos devedores, em relação aos seus ativos e passivos. Assim, apesar da possibilidade de apresentação de um plano único, os devedores deverão propor meios de recuperação independentes e específicos para a composição de seus passivos.

   No mesmo sentido, a deliberação de cada devedor deverá ocorrer em assembleias-gerais de credores independentes. Por serem realizados em separado, os quóruns de instalação e de deliberação das assembleias-gerais devem ser verificados em referência aos credores de cada devedor, do mesmo modo que as atas deverão ser elaboradas em relação a cada um dos devedores.

   Observa-se, por fim, que a independência dos devedores resulta na possibilidade de que alguns deles obtenham a concessão da recuperação judicial e outros tenham a falência decretada. Nestes casos, o processo poderá ser desmembrado de acordo com a necessidade processual, como explana o artigo 69-I em seus §§ 4º e 5º.

   Embora passível de críticas, principalmente em relação à possibilidade de consolidação substancial, as inovações trazidas Seção IV-B, artigos 69-G ao 69-L da Lei nº 14.1126 , consolidam o posicionamento doutrinário e jurisprudencial sobre o assunto, trazendo mais segurança jurídica aos grupos sob controle societário comum que buscam na recuperação judicial uma possibilidade de se reerguer.

REFERÊNCIAS:

BRASIL. Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm; Acesso em 19 de mai de 2021.

BRASIL. Lei nº 14.112, de 24 de dezembro de 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L14112.htm#art1; Acesso em 19 de mai de 2021.

COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 4. ed. — São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021

BRASIL. Lei nº 14.112, de 24 de dezembro de 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L14112.htm#art1; Acesso em 19 de mai de 2021

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